Educomunicação: É possível dialogar com as mídias?

Ismar de Oliveira Soares (*) explica para o Net Educação o que é a educomunicação e como as práticas influenciam o protagonismo da sociedade. A entrevista foi feita por Ana Luiza Basilio em fevereiro de 2010. Aproveitem!

O esforço de aproximar a educação dos meios de comunicação se faz presente na vida de Ismar de Oliveira Soares há pelo menos 40 anos. A iniciativa data da década de 70, quando, a convite de escolas de formação de normalistas percorreu os Estados de Minas Gerais e Espírito Santo discutindo com as futuras professoras a influência da TV sobre crianças e jovens.

A leitura crítica da mídia não era, contudo, o único ponto de interesse de Ismar em relação à comunicação. Voltava-se também ao uso sistemático da produção dos veículos de informação em suas atividades como professor de escolas públicas e particulares onde exercia o magistério, como o Colégio Estadual Camargo Aranha, no Braz, e o Colégio São Luís, dos jesuítas, na Avenida Paulista, onde lecionou geografia até meados dos anos 80.


“Tinha como hábito trazer para os alunos os últimos documentários de televisão que mostravam a configuração física e os aspectos da geografia humana e política dos ecossistemas analisados; promovia discussões sobre a validade do produto, sua coerência com a realidade e as contribuições que ofereciam”, relata o jornalista, doutor em comunicação pela ECA/USP e fundador do Núcleo de Comunicação e Educação da Universidade de São Paulo (NCE/USP).

Com o advento dos canais a cabo e o avanço das tecnologias da informação, o educador, já no exercício da função de pesquisador, também passou a organizar seminários e cursos para formação de professores voltados à análise e uso da produção midiática alinhada à temática pedagógica.

Embora a educação para a recepção crítica ou com o uso didático das mensagens veiculadas por jornais e emissoras de TV tenham ocupado espaço na rotina de trabalho do professor – precursor dos estudos de educomunicação no Brasil – estas áreas de atividade não se configuravam como suas únicas preocupações: “Também me chamava a atenção a forma como o movimento social se relacionava com o universo das comunicações, como era o caso do Greenpeace, que sabia utilizar a mídia na defesa de seus interesses e pontos de vista”, esclarece o educador, apontando para o surgimento de metodologias diferenciadas de abordagem da mídia pela sociedade que acabaram por configurar-se como uma nova forma de percepção da relação comunicação/educação.

Em entrevista ao NET Educação, Ismar fala sobre o conceito da educomunicação daí decorrente e de que maneiras suas práticas podem impactar a vida de professores, alunos e famílias.

NET Educação – Quando surgiu o conceito da educomunicação?
Ismar -
A educomunicação vem se desenhando desde a década de 70, representada pelo esforço da sociedade em se aproximar do mundo da comunicação para promover causas de seu próprio interesse. Na América Latina, especialmente, ficaram conhecidas as iniciativas dos grupos que, sistematicamente, passaram a utilizar os processos da comunicação, como o teatro, e os recursos da informação (pequenos jornais e emissoras comunitárias de rádio) numa perspectiva participativa, como sugeria, na ocasião, o educador Paulo Freire.
As tentativas de ingresso no universo da comunicação demonstravam, em nível continental, a importância de se fugir da política de centralização da informação comandada pelas agências de notícias do hemisfério norte. Na verdade, o que se sabia do país vizinho não era nada além daquilo que difundiam para seus clientes as agências internacionais de notícias, centradas em Nova York, Londres ou Paris.
Tratou-se de um movimento que ganhou respaldo no momento em que a própria UNESCO - no final da década de 1970 e início dos anos 1980 - passava a discutir a urgência de se promover uma “nova ordem mundial da informação e da comunicação”, programa conhecido pela sigla NOMIC.
A luta contra as ditaduras militares no continente acabou por legitimar o esforço das organizações do movimento popular em buscar de novas formas de expressão.
Com o fim do período repressivo, a causa já se encontrava muito mais legitimada, com os sindicatos de profissionais da comunicação e os próprios meios de informação discutindo o papel de responsabilidade social que lhes cabia.

Nesse contexto, entre os anos de 1997 e 1999, a USP realizou uma pesquisa em 12 países da América Latina para identificar como estavam ocorrendo as práticas sociais na relação entre a comunicação e educação, envolvendo tanto os centros de cultura alternativos quanto a educação formal e a própria mídia.

NET Educação – Qual o papel da USP nesta pesquisa?
Ismar -
A USP, por meio de seu Núcleo de Comunicação e Educação (NCE), teve dois papéis. Em primeiro lugar, identificou a consolidação do novo pensamento, verificando que se traduzia em ações de certa forma sincronizadas, multimidiáticas, voltadas para garantir o protagonismo comunicativo dos sujeitos sociais, percebendo, por outro lado, que tais ações se constituíam num conjunto complexo de atividades, indo além de projetos isolados, alternativos ou de simples resistência cultural.
Em segundo lugar, os pesquisadores passaram a atender uma demanda, vinda especialmente do poder público, pela difusão do conceito e da prática da educomunicação, formando, ao longo da primeira década do século XXI, mais de 30 mil interessados, sempre em grupos integrados por docentes e alunos.

NET Educação – Em que ponto a educação popular e a educomunicação se aproximam?
Ismar -
Ambas se apóiam na prática da cidadania e defendem que a comunicação é um direito de todos, que pode ser ensinado nas escolas, sempre que se use uma metodologia construtivista, por projetos.

NET Educação – Como você define a educomunicação?
Ismar -
Uma definição mais simples e direta aponta para o esforço sistemático que setores da sociedade voltados para a educação estão fazendo para ampliar as formas de expressão, garantindo, por exemplo, que novas gerações usem as tecnologias, não de forma competitiva e mercantil, mas em prol da cidadania.
Em uma perspectiva mais complexa, podemos dizer que a educomunicação é o conjunto das ações voltadas a criar e consolidar – seja em uma empresa, um centro de cultura, uma escola ou mesmo na redação de um veículo de informação - ecossistemas comunicativos abertos e criativos, propiciados por fluxos cada vez mais democráticos de informação, carregados de intencionalidade educativa, tendo como objeto último a prática da cidadania. Nesse sentido, um dos pilares da educomunicação é a responsabilidade social, conceito que ganhou força nas duas últimas décadas, mobilizando até mesmo os setores mais conservadores da sociedade.

NET Educação – O que é preciso para que a educomunicação se aplique a um ambiente escolar?
Ismar -
Por se tratar de uma opção que foge aos modelos tradicionais de inter-relação professor-aluno, a educomunicação necessita ser introduzida a partir de uma escolha consciente por parte da gestão e do corpo docente. Não basta um professor isolado manifestar seu interesse em ampliar a capacidade de comunicação de seus alunos, motivando-os a fazer uso dos recursos da informação de uma forma criativa. Se este esforço não for respaldado pela gestão escolar, sua atitude será vista pelos demais colegas como inadequada ao funcionamento do estabelecimento de ensino.
Por outro lado, não basta que a direção opte pela educomunicação, se os professores não tiverem a oportunidade de passar por uma experiência educomunicativa por meio de um curso de formação.
Nos cursos, fala-se muito da importância da pedagogia de projetos, o que significa dizer que a educomunicação tem um caminho natural a ser percorrido no espaço escolar:
começa pequena - pela ação conjunta de um grupo de professores com seus alunos -, ampliando-se aos poucos, em decorrência dos resultados positivos oferecidos a toda a comunidade.
Na perspectiva da pedagogia de projetos, um professor pode dar início a essa prática, desde que conheça bem o perfil do grupo de alunos com o qual está lidando, ou seja, identifique gostos e necessidades específicas em termos de expressão comunicativa. É preciso reconhecer a vocação expressiva do grupo e identificar algum problema a ser resolvido, para então escolher a mídia que será usada.
No projeto que o NCE-USP fez para a prefeitura de São Paulo, entre 2001 e 2004, optamos, por exemplo, pela linguagem radiofônica, pois o objetivo era reduzir rapidamente a violência nas escolas e entendemos que a produção radiofônica, feita em grupo, colocaria alunos e professores em permanente diálogo em torno dos problemas da escola.
O resultado se fez sentir imediatamente, segundo informou à imprensa a Secretária da Educação do município da época. Hoje, a prefeitura mantém o projeto, optando pela linguagem digital: o rádio acoplado à Internet, com igual sucesso.
Em resumo, podemos elencar alguns elementos iniciais para a prática da educomunicação numa escola: é preciso, em primeiro lugar, fazer a opção política pela educomunicação; em segundo lugar, pensar nas pessoas e em como estabelecer ou ampliar o relacionamento entre elas; em terceiro lugar, identificar um problema a ser resolvido e discutir coletivamente como a comunicação poderia ajudar a resolvê-lo.
A proposta educomunicadora deve considerar o tempo de execução, as ações pertinentes e os recursos a serem utilizados, tais como a música, a dança, o vídeo, o jornal mural, o jornal impresso, dependendo do caso em questão. Encontrar grupos que praticam a mesma pedagogia e dar visibilidade aos resultados é fator importante na consolidação da proposta educomunicativa.

No caso de São Paulo, o projeto Educom se mantém nove anos depois de seu início, graças justamente à decisão das autoridades e ao empenho de lideranças de professores e de alunos em cada unidade escolar.

NET Educação – De que maneira esses projetos costumam impactar positivamente os envolvidos?
Ismar-
As práticas educomunicadoras ampliam habilidades e reforçam a auto-estima uma vez que as pessoas envolvidas – professores ou alunos, mesmos das séries iniciais – ao desenvolverem sua própria comunicação, se apoderam de conhecimentos sobre como se tornar gestoras, líderes de uma causa.
No caso do ambiente escolar, por exemplo, embora o professor ainda esteja na ponta da hierarquia de um projeto educomunicativo, sua autoridade, ao longo do tempo, se delineia por meio do diálogo, da colaboração, e não por imposição. Se essa prática se torna constante há uma disseminação de princípios e de metodologias inovadoras. É aí que a educomunicação se multiplica, beneficiando toda a comunidade escolar ou até mesmo o entorno da escola.

NET Educação – De quem é a responsabilidade pela gestão do conhecimento em um projeto educomunicativo?
Ismar -
Não se pode descartar a importância das lideranças em processos de mudança, como o proposto pela educomunicação. No caso, temos diferentes níveis de gestão do conhecimento. Começando pelo nível da decisão, os diretores e coordenadores são os primeiros gestores do conhecimento; em seguida, no nível da disseminação, o agente externo, como a universidade e os especialistas que prestam serviços de formação, desempenham um papel importante; em terceiro lugar, a comunidade educativa envolvida nos projetos, incluindo, no mesmo nível, professores e alunos, levando em conta a natureza dialogal do processo.

É importante lembrar que se a formação for dada específica e exclusivamente aos professores, não se tem a garantia de que o conhecimento adquirido seja repassado aos alunos, impedindo-se, desta forma o fluxo da disseminação e o vigor da proposta.

NET Educação – Essas práticas podem se estender ao ambiente familiar? De que maneira? Ismar - Pais educomunicadores são aqueles preocupados com a comunicação de seus filhos e como estes se relacionam com a mídia. O ideal é a família garantir que seus filhos passem por aprendizagens que envolvam as múltiplas linguagens, próprias das variadas formas de arte, como música, dança, teatro e também pelas acessíveis através das múltiplas tecnologias.
A questão não é a arte pela beleza de sua estética ou a tecnologia pela sua utilidade funcional. Existe, sobretudo, a intencionalidade educativa, a ação colaborativa e a finalidade cidadã de todo o processo.
Outro capítulo da prática educomunicativa familiar diz respeito à relação das crianças com a mídia. Existem aqui duas tendências básicas: os pais que entregam seus filhos à mídia que funciona como “babá eletrônica”, sem questionar a natureza do que é oferecido ou imposto às crianças; ou os pais que se preocupam, mas não sabem o que fazer, preferindo até mesmo que o governo resolva, censurando a produção dos meios massivos.
O que a educomunicação propõe é que a sociedade assuma este problema e ajude os pais a encontrar soluções adequadas tanto para formar a capacidade de discernimento de seus filhos quanto para, em certos casos, manter uma vigilância adequada sobre a própria mídia que chega às suas casas.
Não basta, neste caso, a chamada “classificação indicativa”, hoje inócua, pois são os próprios produtores que fazem a classificação de seus produtos, muitas vezes movidos por motivos comerciais e raramente por motivos educativos.
É preciso muito mais, como o conhecimento dos pais sobre o tipo de produto oferecido e, se for o caso, a presença deles junto com seus filhos, nos momentos em que se relacionam com os veículos de informação.
Muitos pais encontram, contudo, dificuldade nesta tarefa, porque já foram acostumados ao formato padrão apresentado pelas mídias. Aqui, cabe à escola ajudar os pais a desempenhar bem seu ofício, mediante cursos e reuniões para discutir o problema e colaborar para a definição de critérios de ação em suas casas.
É importante salientar que a educomunicação não se coloca contra os meios de comunicação. Quer apenas que a mídia entre nas casas de família para informar, divertir e ampliar as formas de obtenção da cultura. E para que isso aconteça de maneira efetiva, as escolas devem unir-se às famílias, prestando aos pais um serviço de formação educomunicativa.

NET Educação – Se a educomunicação não se coloca contra os meios de informação, pode, por acaso, transformar-se em sua aliada?
Ismar - Pensando na distância existente entre a parte mais pobre da população a certas tecnologias, acessíveis apenas a uma elite, como se dará a universalização do processo de aproximação entre estes dois mundos?
Não existem barreiras pré definidas para as alianças, nem razões permanentes para os confrontos. Entre o sistema de meios e os educadores, o relacionamento conflituoso ou amigável se dá à medida que os interesses de colaboração ou de enfrentamento passam a existir. A grande questão reside, na verdade, no reconhecimento de que se existe efetivamente um campo de tensão, por outro lado, existe um imenso espaço para a mútua colaboração.
Tal tensão e a possibilidade de colaboração são dificilmente perceptíveis por parte dos educadores porque em geral não discutem esse assunto nas faculdades de pedagogia ou de comunicação. É possível, contudo, quebrar resistências em relação a este tema com a vigência nas escolas de projetos bem sucedidos de práticas educomunicativas que legitimem a conversa em torno da presença das tecnologias e da mídia na família e na sociedade.

NET Educação – Qual o futuro da educomunicação?
Ismar - A educomunicação, ainda que visível, é um conceito em processo de identificação e de reconhecimento. Encontra entusiasmados adeptos, como também inimigos declarados. Para muitos, trata-se de um modismo. Para outros, de um caminho que vai ao encontro das recentes mudanças pelas quais passa a sociedade.
As posições, contra ou a favor, são legítimas, pois partem de pressupostos do que seja a educação, ou mesmo do que se entenda por comunicação. No caso, quando uma teoria iluminista de educação se une a uma visão funcionalista da comunicação, o conceito da educomunicação passa, em princípio, a ser combatido. Por outro lado, quando uma teoria construtivista e dialógica da educação se aproxima de uma visão participacionista e democrática da comunicação, o conceito da educomunicação é visto com naturalidade.
Nesse sentido, já não falamos simplesmente em “Mídia e Educação”, sem perguntar de que mídia e de educação estamos falando.
No caso da educomunicação, as opções já foram definidas, não por algum teórico reconhecido, mas pelo próprio movimento social que, desde os meados do século XX, vem exercendo a prática de pesquisar e avançar em experiências de uso alternativo da comunicação com propósitos educativos.
A consolidação do conceito e seu reconhecimento pela academia e, agora, pelas políticas públicas não fizeram mais que constatar um processo em andamento. No caso, o reconhecimento de um paradigma, de um referencial, mais do que de algum tipo de metodologia de ensino ou de didática.
Quanto às opiniões e às reações, estão sujeitas à mobilidade das relações de força nos espaços da educação e da comunicação, essencialmente espaços de poder. De minha parte, acredito que não há volta, pois os próprios jovens descobriram o novo caminho de estar na escola.

(*) Ismar de Oliveira Soares - Doutor em Ciências da Comunicação, com pós-doutorado junto à Marquette University, Milwaukee; Jornalista, doutor em comunicação pela ECA/USP e fundador do NCE/USP - Fo
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