Quanto Vale Uma Convicção?

Por Malu Fontes 

Um fato ocorrido no último feriado do trabalho, em Portugal, sem nenhum destaque nos telejornais brasileiros, deu a medida do quanto, no circo do consumo, tudo está à venda e pode ser negociado, principalmente as mais sólidas convicções ideológicas. Os brasileiros talvez tenham dificuldade de entender o ponto zero de todo o barulho gerado no feriado do trabalhador nas principais cidades portuguesas. No Brasil, há muito tempo, não apenas os supermercados, mas todo o comércio abre as portas durante os feriados e os finais de semana e ninguém reclama.



Este ano, em Portugal, bastou uma rede de supermercados anunciar que abriria suas lojas no feriado de primeiro de maio para todo o país dar início a um intenso e apaixonado debate sobre os limites do capitalismo e do consumismo e seus impactos na vida das pessoas. Os sindicatos propuseram imediatamente uma greve nacional visando tão somente impedir que a rede de supermercados levasse essa heresia adiante, com o apoio de entidades da sociedade civil. Os argumentos eram de que o desejo de lucro dos empresários não poderia se sobrepor ao direito do lazer e descanso dos trabalhadores no 1º de maio. 

SARAMAGO - Enquanto a sociedade, a intelectualidade, o senso comum em cada esquina e os empregados de supermercados faziam do assunto a polêmica de ocasião, os donos da rede tiveram uma ideia que durante todo o dia de terça-feira transformou as cidades e bairros mais importantes do país em um cenário vivo do livro de Saramago, se este tivesse vivido o bastante para batizar sua obra de Ensaio Sobre o Consumo, em vez de Ensaio Sobre a Cegueira.

A rede de supermercados, uma das principais do país e que atende pelo sugestivo nome de Pingo Doce, achou a fórmula para obter consenso quanto à abertura das portas pela primeira vez na história portuguesa no 1º de maio: sem qualquer campanha publicitária, deixou correr pelas cidades os boatos verdadeiros de que, ok, cometeria uma heresia ideológica trabalhista mas, ofereceria uma compensação e tanto a quem aceitasse o convite para ir fazer umas comprinhas no feriado. Todos os clientes que comprassem mais de 100 euros, teriam um desconto de 50%. Foi o suficiente para as convicções dos trabalhadores e cidadãos portugueses sobre a sacralidade do 1º de maio se desfazerem. Afinal, que convicção resiste a uma proposta indecente que transforma uma conta de mil euros em 500? Com 50% de ganho, quase todo mundo vende a sua.

CIGANOS - As cenas exibidas pela TV portuguesa, descritas pelos jornais impressos do país e os vídeos disponíveis para o mundo no YouTube mostram em que pode se transformar um espetáculo de consumo. O surrealismo começou nas madrugadas anteriores ao feriado, com a população cigana. Negociantes natos do tipo que vislumbram de longe uma boa oportunidade de lucrar muito investindo pouco, os ciganos acorreram aos supermercados, enfiaram uma moeda de um euro para cada carrinho de compras que ficam nos estacionamentos das lojas (lá os carrinhos só são destravados após a inserção de uma moeda, devolvida ao fim das compras e quando do retorno do equipamento ao local de origem) e logo em seguida postaram-se a alugá-los para os primeiros madrugadores das filas e os alugavam a 25 euros. Naturalmente não havia, a essa altura, um só carrinho disponível para ser retirado em troca da tal moeda de um euro.

O cenário foi dantesco, para muito além do surto que acometia os personagens de Saramago no Ensaio Sobre a Cegueira. Centenas de pessoas presas, dez horas em filas para efetuar pagamentos nos caixas, laticínios devorados sem pagar dentro da loja pela fome que os clientes começaram a sentir diante de tantas horas de filas, caos e espera, pessoas quebrando garrafas para usar como armas com o intuito de disputar produtos, prateleiras absolutamente vazias antes do meio da tarde e cidades com engarrafamentos nunca vistos em nenhuma delas.

NABO - O caos foi tamanho que se tornou um problema de polícia, de estado, de segurança pública, de economia (dumping) e, acima de tudo, um debate ideológico sobre o que pode e até aonde vai a sanha ensandecida por consumo. Quem acha que convicção ideológica de trabalhador não tem preço, ofereça-lhe um desconto de 50% diante de um carrinho de supermercado cheio, mesmo que para vender-se por esse desconto o contemplado precise correr risco de vida. E embora a Rede Globo tenha um correspondente em Portugal, nenhum minuto dos telejornais da casa foi dado a este episódio. Ah, mas se fosse um nabo gigante colhido na quinta do seu Manuel em algum ponto da Beira Interior, certamente o Jornal Hoje noticiaria com destaque... 

(*) Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 06 de maio de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com

Fonte: A Tarde/BA 06/05/2012

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