Existirá um jornalismo de prevenção?


A Mídia nas Tragédias

Por Luis Martins da Silva - 05/02/2013 - Edição 732 (Observatório da Imprensa)


Da presidente Dilma Rousseff às postagens no Facebook, passando pela “grande imprensa”, a tragédia de Santa Maria (RS) tem sido analisada com o enfoque de que tudo deve ser feito para que episódios dessa natureza não mais se repitam. Ao mesmo tempo, as editorias de pesquisa trabalham para que o noticiário rememore fatos similares ocorridos no passado e até com um certo ranking de qual teria sido o maior do gênero, no Brasil e no exterior.
Outros fatos dramáticos e comoventes serão cobertos e escoarão por essa turbina de informações que tende a sofrer de amnésia, por demais expressivos que sejam os acontecimentos – Torres Gêmeas, tsunami etc. Aos poucos, no entanto, as lições vão sendo aprendidas, mesmo quando grandes episódios são encarados como fatalidades fora do controle humano. Ora, até o que pode ser feito para que um novo e imenso asteroide não caia inteiro sobre a Terra tem sido objeto de preocupação, quanto mais em relação a tragédias que podem acontecer ao nosso lado ou conosco.
Aos poucos, também o jornalismo se mexe nos seus valores de maneira a agregar algo mais aos simples valores-notícia. Torna-se imperioso mudar a “cultura profissional” que até já foi slogan de uma saudosa rede de TV: “Aconteceu, virou manchete”. E o que pode ser agregado aos valores-notícia? Serviço e utilidade pública, campos semânticos por demais abrangentes, mas que apontam para uma prática já em curso, que consiste em apresentar ao público-cidadão elementos adicionais com pelo menos três objetivos: a) compreender melhor o fato; b) conhecer direitos e deveres; c) prevenir-se.
Aprendizado doído
Em pesquisa que estamos realizando com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), caminhamos para alguns aspectos conclusivos, sendo um deles a classificação do jornalismo em três grandes vertentes. A primeira hipótese é de que o jornalismo viveu e ainda vive uma grande etapa que se alimenta pela sensação, a qual denominamos de protojornalismo. A segunda trata do jornalismo da informação, que procura ideologicamente se distinguir das narrativas emocionais, construindo para si valores como objetividade, neutralidade e imparcialidade, mas ainda se limitando ao recorte dos “fatos e nada além deles”, separando e identificando os espaços específicos da “opinião”. Esta segunda fase corresponde ao jornalismo propriamente dito, que, embora siga “linhas editoriais”, considera que não deve ir além da função de informar – leia-se: “não nos envolvemos com os fatos, apenas os noticiamos”.
A terceira etapa, ou da comunicação, e que estamos denominando de pós-jornalismo, é que é a nossa hipótese central: o jornalismo incorporou a si graus de envolvimento com os fatos e até de mobilização em torno deles, não se limitando a informar, pois incorpora aos fatos valores agregados seja na narrativa sincrônica, seja não os esquecendo. É quando o jornalismo passa realmente a exercer uma função fiscalizadora, que inclui cobrar providências e apontar previdências.
Protojornalismo, jornalismo e pós-jornalismo coexistem e se complementam, com uma diferença: quanto a essa última categoria, não só o noticiário ganha uma espécie de pós-produção (na qual a incorporação mínima de valor agregado é o típico “para compreender o fato”), como a reportagem voltará em algum momento ao cenário dos acontecimentos, não mais para investigar as causas dos mesmos, mas as consequências. Tradicionalmente, as redações não são muito de retornar ao que “já foi dado”, pois isso se considera (ainda) “requentar matéria”.
Fatos como os acontecidos na boate Kiss, de Santa Maria (RS), levam a imprensa a se juntar a outras categorias que trabalham a partir dos fatos, como de todo o faz a chamada sociedade civil quando se mobiliza para mudar aspectos da realidade. Ou mesmo os políticos, quando deixam de ser oportunistas para serem estadistas. Um dia, como diz a moçada, a “ficha cai”. Ora, teriam de ocorrer tantos massacres para que governantes deduzam que se torna necessário interferir na facilidade com que se adquirem armas? Quando John Lennon foi assassinado, noticiou-se que 100 milhões de norte-americanos tinham revólveres. De lá para cá, não somente esse número dobrou como a variedade de armas passou da defesa para o ataque.
Com relação à tragédia de Santa Maria, tenho notado que uma nova perspectiva se adiciona no cenário, a preocupação com o futuro. Toda a cobertura está marcada por um tom previdenciário, mais acentuado até do que às referências à apuração das causas e dos culpados. E tantas são as linhas de leitura crítica em torno do que se passou na noite daquele sábado (26/1) na cidade gaúcha – tantas vidas ceifadas em poucas horas –, que o otimismo nos permitiria enxergar indícios de que o Brasil e os brasileiros estariam dando mostras de querer construir uma sociedade autoflexiva, o que implica tirar lições do passado e do presente para projetar um futuro mais precavido.
Estamos, no panorama geral da chamada “cultura do brasileiro”, longe de se cultivar uma cultura de gestão de crise, tema muito presente na literatura mais avançada do campo da comunicação organizacional. Os especialistas em gestão de crise têm conseguido argumentar em sua produção que os riscos devem ser ensaiados, ou seja, a moderna gestão não espera acontecer – simula, desenha cenários, teatraliza o trágico, com o objetivo de traçar políticas de redução de danos. O aprendizado mais doloroso decorre do comodismo típico da cultura do jeitinho e do conformismo, cuja tradução consta de uma certa inércia de ver as coisas: “o brasileiro só fecha a porta depois que ela foi arrombada”.
Sinais evidentes
O trauma, para ser superado, tem de ir além do medo e dos mecanismos de sublimação. Trata-se de um aprendizado chato, mas de consequências produtivas. E os fatos jornalísticos, para que simplesmente não se esgotem perante um “fato novo”, têm de ganhar um nexo com as consequências. Senão, leremos, ouviremos e veremos sempre reportagens de lamento como aquelas que reapresentam as tragédias nos mesmos lugares, as enchentes nos mesmos lugares, as secas nos mesmos lugares e o pior dos flagelos, coisas do tipo: “Um ano depois do deslizamento de terra no município de Niterói, a maioria das vítimas não teve acesso às medidas reparadoras prometidas e só uma senhora está instalada num dos apartamentos previstos”.
Portanto, a pior tristeza é a que se possa sentir num futuro de frustrações: “Um ano depois da tragédia de Santa Maria...” Não, este panorama deve mudar. E há elementos para intuir que a imprensa encontra-se numa terceira fase do jornalismo, aquela que estamos denominando de pós-jornalismo e que significa ir além dos fatos. De que forma? A investigação preventiva. As matérias de serviço e de utilidade pública. A informação transformada em comunicação (produção compartilhada de sentido) e, consequentemente, em mobilização.
Em Brasília, por exemplo, a faixa de pedestres tem sido um longo cultivo e se encontra definitivamente incorporada à “cultura” do brasiliense. Qualquer criança de primeiros passos sabe como estender o braço em “sinal de vida” na passarela. Mas para isso foi necessária a soma de esforços em torno da Campanha de Paz no Trânsito, do governo, da sociedade e principalmente da imprensa, em especial do Correio Braziliense, jornal que detém centenas de prêmios, em grande parte por ser, no Brasil, marca registrada de jornalismo público. Tempos atrás, quando esteve na Universidade de Brasília o professor de civic journalism Chris Peck, ele pediu para conhecer a redação do CB por dois motivos: por ser um jornal de notórios vínculos com a cidadania e por ser uma publicação graficamente muito bonita (com prêmios específicos nessa área).
Tal como uma regente de orquestra, a presidente Dilma Rousseff já deu o tom: “Temos o dever de assumir o compromisso de assegurar que ela [a tragédia] jamais se repetirá”. Jamais é uma terra muito distante, mas, do lado da imprensa, há sinais bem evidentes de que o jornalismo brasileiro já ultrapassou em muito a idade mítica do protojornalismo de sensações e está deixando para trás também a noção de que lhe compete tão somente ser “espelho” dos fatos. Mesmo diante de um espelho é preciso fazer alguma coisa; no mínimo, compor-se melhor.
[Luiz Martins da Silva é jornalista e professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília]

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