Ler a leitura



Roger Chartier

Em seu pequeno livro A importância do ato de ler, Paulo Freire distinguia dois sentidos da palavra “ler” (Paulo Freire, 1982). Um sentido literal: ler é ler letras, palavras, livros. Esta leitura supõe a alfabetização, a aprendizagem escolar, o domínio da palavra escrita. Porém, ler tem também um sentido metafórico. Ler é, antes e depois da leitura de livros, “ler” o mundo, a natureza, a memória, os gestos, os sentimentos –, tudo o que Paulo Freire designa com o neologismopalavramundo. Ler a leitura, como indica o título de minha conferência, é talvez entender as relações entre estes dois sentidos do verbo “ler”, considerando, por um lado, a especificidade da leitura de livros – que deve evitar o perigo de um uso descontrolado e excessivo da palavra, como se toda “leitura” estivesse governada pelas regras que caracterizam o deciframento dos textos – e, por outro lado, os processos que organizam segundo lógicas muito diferentes a compreensão imediata do mundo, das experiências da existência e seu encontro com a escrita.

Em 1968, num ensaio que se tornou célebre, Roland Barthes associava a onipotência do leitor com a morte do autor (Roland Barthes, 1968). Destronado de sua antiga soberania sobre a linguagem ou pelas “escrituras múltiplas, surgidas de diversas culturas e que estabelecem entre si uma relação de diálogo, paródia e de oposição”, o autor deve ceder sua premência ao leitor, entendido como “aquele que reúne em um mesmo campo todas as características que constituem o escrito”. O lugar da leitura era, portanto, considerado como aquele em que se reordena o sentido plural, móbil e instável do texto, como o lugar onde o escrito adquire sua significação.

Entretanto, pouco tempo depois de reconhecido o nascimento do leitor, se multiplicaram os diagnósticos que anunciaram a sua morte. Estes diagnósticos se apresentam de três formas:

PRÁTICAS DE LEITURA
A primeira morte remete às transformações das práticas de leitura. Na França, ao comparar pesquisas estatísticas referentes a práticas culturais, ainda que não se observe um retrocesso do porcentual global de leitores – já que tanto em 2008 quanto em 1973 uns 70% dos investigados dizem ter lido ao menos um livro no ano anterior –, ao menos se nota uma diminuição da proporção dos “forts lecteurs”, isto é, os leitores que leem mais de vinte livros por ano. Este retrocesso é particularmente importante no grupo de leitores compreendido entre os 19 e 25 anos e na população masculina, o que produz como consequência uma “feminilização da leitura” (Olivier Donnat, 2012).

Por outro lado, as investigações sociológicas dedicadas ao grupo de jovens compreendidos entre 13 e 17 anos registram uma diminuição da leitura e, sobretudo, pouca importância do livro na apresentação que estes jovens fazem de si mesmos (Christian Baudelot et al., 1999). Uma investigação recente baseada em entrevistas e questionários para 4 mil jovens franceses de 11, 13, 15 e 17 anos reforça este diagnóstico. Em 2008, 33% das crianças de 11 dizia ler livros todo dia e somente 15% declarou não ler quase nunca. Com os adolescentes de 17 anos, as porcentagens são bastante diferentes: somente 9% dizia ler um livro todo dia e 47% que nunca ou quase nunca lia um livro. A conclusão é contundente: a adolescência é o momento decisivo na relação com a distância tomada a respeito dos suportes tradicionais da cultura escrita e a leitura (Pierre Mercklé et al., 2010). Desde os anos 80 do século XX, cada geração está entrando na idade adulta com um nível de leitura inferior ao nível da geração anterior.

Devemos, porém, matizar essas observações. Por um lado, ler não é somente ler livros e ler não é somente ler objetos impressos. Os “nativos digitais” são leitores de revistas ou outros textos eletrônicos e não somente usuários de jogos eletrônicos ou leitores de e-mails ou SMS (Christophe Evans, dir., 2011). Por outro lado, ler não é apenas ler um texto da primeira à última linha. A história da leitura nos ensinou a diversidade de práticas designadas pela palavra “leitura”: ler em voz alta para os outros ou para si e ler silenciosamente, ler intensivamente ou extensivamente, ler para o estudo ou ler para o entretenimento, ou como diz Umberto Eco ler libri da legere e ler libri da consulta. Devemos levar em conta estas variadas modalidades de ler – que foram se tornando contemporâneas ao longo dos séculos – antes de estabelecer um diagnóstico demasiadamente geral sobre a perda da leitura que não pode deduzir-se imediatamente do retrocesso da leitura de livros.

A CRISE DA EDIÇÃO
As conclusões que se podem obter das políticas editoriais têm reforçado a certeza de que há uma crise da leitura. Esta crise, que não perdoa os gêneros de ficção, se faz sentir com mais força na edição dos livros de ciências humanas e sociais. Em ambos os lados do Atlântico, os efeitos desta crise são comparáveis, ainda que as causas principais não sejam exatamente as mesmas. Nos Estados Unidos, o dado essencial é a redução drástica da aquisição de monografias por parte das bibliotecas universitárias, cujos orçamentos estão sendo devorados pelas assinaturas de publicações periódicas em ciências exatas que, em alguns casos, alcançam cifras consideráveis, até 10 e 15 mil dólares por ano. A isto de deve a reticência dasacademic press em publicar livros muito especializados: teses de doutorado, estudos monográficos, livros de erudição (Robert Darnton, 1999 e 2009).

Na França, uma prudência semelhante, que limita as tiragens, obedece principalmente à redução de compras dos forts lecteurs – que não eram somente professores. Para o setor das ciências humanas e sociais, os dados estatísticos compilados na França pelo Syndicat National de l’Edition mostram, a partir da década de 1990, uma diminuição do número global de livros vendidos acompanhada por um aumento do número de títulos publicados destinados a ampliar a oferta e mitigar com alguns possíveis sucessos as dificuldades econômicas das empresas. As consequências sobre as políticas editorais são a diminuição das tiragens médias, uma grande prudência ante às obras consideradas muito especializadas e ante as traduções e a preferência pela publicação de manuais, dicionários, enciclopédias ou biografias.

No caso da diminuição da leitura por parte dos adolescentes devemos entender um duplo paradoxo. Em primeiro lugar, tanto a generalização do acesso ao ensino secundário, quanto o prolongamento do tempo de escolarização têm se traduzido num retrocesso da leitura de livros (Catherine Simon, 2012). Penso que se possa dizer o mesmo da brecha entre a massificação do acesso aos estudos universitários e uma menor importância outorgada à leitura e ainda menos à compra de livros por parte dos estudantes que preferem fotocópias, apontamentos ou a wikipédia (Alain Supiot, dir., 2001). O segundo paradoxo, próprio da edição de livros para crianças e adolescentes consiste no contraste entre o retrocesso das práticas de leitura dos jovens e o crescimento espetacular do volume de negócios deste setor editorial. Na França, seu balanço econômico global ou chiffre d’affaires passou de 203 milhões de euros em 200 [NT: sic] a 372 milhões em 2011 (Syndicat National de l’Edition, 2012). Hoje em dia, os livros para jovens constituem o quarto setor da atividade editorial (depois da literatura, dos livros práticos e de arte e da edição escolar) e mais de 20% das compras de livros. Por estes mesmos anos, as livrarias especializadas neste setor sofreram retrocessos em seus ingressos inferiores às outras livrarias, ainda que com perdas de 10% a 20%. Este último fenômeno pode explicar-se pelos novos hábitos de compra de livros: pela internet, nos supermercados, nas lojas multimídia. Mais difícil de compreender é a brecha entre o crescimento da produção editorial para jovens e a drástica redução das práticas de leitura dos próprios jovens. Então, devemos pensar que as respostas das enquetes ocultam as práticas reais num tempo onde apresentar-se como leitor não é valorizado, particularmente no caso dos homens? Ou bem, os livros comprados não são lidos? Somente novas investigações poderão sugerir respostas a estas interrogações.

A CIVILIZAÇÃO DA TELA
Em uma terceira perspectiva, a morte do leitor e a desaparição da leitura se concebem como a consequência inevitável da civilização da tela, do triunfo das imagens e da comunicação eletrônica. Semelhante perspectiva esquece que as telas do presente não são somente as de McLuhan (Marshall McLuhan, 1962). Diferentemente das telas do cinema ou da televisão, estas propõem textos, não somente textos – certamente – porém também textos. A antiga oposição entre, por um lado, o livro, o escrito, a leitura e, por outro lado, a tela e as imagens foi substituída por uma situação nova caracterizada pela aparição de um novo suporte para a cultura escrita. Disto resulta a paradoxal ligação entre a terceira revolução do livro – que transforma as modalidades de inscrição e transmissão dos textos, como fizeram a invenção do códex e logo da imprensa – e o tema obsessivo da “morte do leitor”. Compreender esta contradição supõe fazer um olhar ao passado e comparar os efeitos das revoluções anteriores com as mutações do presente.

A revolução digital modifica tudo de uma vez: os suportes da escrita, a técnica de sua reprodução e disseminação e as maneiras de ler. Tal sincronia é inédita na história da humanidade. A invenção da imprensa não modificou as estruturas fundamentais do livro, composto – tanto antes como depois de Gutenberg – por pranchas, folhas e páginas reunidas em um mesmo objeto. Nos primeiros séculos da era cristã, esta nova forma de livro, a do códex, se impôs à custa do rolo, porém não esteve acompanhada por uma transformação da técnica de reprodução dos textos, sempre assegurada pela cópia manuscrita. E embora a leitura tenha conhecido várias revoluções, assinaladas ou discutidas pelos historiadores, todas ocorreram durante a larga duração do códex, estas são as conquistas medievais da leitura silenciosa e visual, a paixão por ler que envolveu o Século das Luzes, inclusive a partir do século XIX, a entrada na leitura dos recém-chegados: os meios populares, as mulheres e as crianças, tanto dentro quanto fora da escola (Guglielmo Cavallo e Roger Chartier, dir.1997).

Ao romper o antigo laço entre os textos e os objetos, entre os discursos e sua materialidade, a revolução digital obriga a uma radical revisão dos gestos e noções que associamos ao escrito. Apesar da inércia do vocabulário que busca domesticar a novidade denominando-a com palavras familiares, os fragmentos de textos que aparecem na tela não são páginas, mas sim composições singulares e efêmeras. E contrariamente a seus predecessores, rolos ou códices, o livro eletrônico não se diferencia das outras produções da escrita pela evidência de sua forma material.

A descontinuidade existe, inclusive, nas aparentes continuidades. A leitura frente à tela é uma leitura descontínua, segmentada, ligada ao fragmento mais que à totalidade. Acaso não seria, por isso, a herdeira direta das práticas permitidas e suscitadas pelo códex? Este último convida a folhear os textos, apoiando-se em seus índice ou então a “saltos e pulos”, à sauts et gambades, como dizia Montaigne. É o códex e não o computador o que convida a comparar diferentes passagens, como queria a leitura tipológica da Bíblia, ou a extrair e copiar citações e sentenças, assim como exigia a técnica humanista dos lugares comuns. Entretanto, a similaridade morfológica não deve conduzir ao engano. A descontinuidade e a fragmentação da leitura não têm o mesmo sentido quando estão acompanhadas da totalidade textual contida no objeto escrito, tal como propõe o códex, e quando a superfície luminosa da tela onde aparecem os fragmentos textuais não deixa ver imediatamente os limites e a coerência do corpus de onde foram extraídos.

A descontextualização dos fragmentos e a continuidade textual que não diferencia mais os diversos discursos a partir de sua própria materialidade parecem contraditórias com os procedimentos tradicionais do aprender lendo. Este – graças à forma de sua publicação – supõe, tanto a compreensão imediata do tipo de conhecimento que se pode esperar de um discurso, quanto a percepção das obras como obras, isto é, em sua identidade, totalidade e coerência. A revolução digital não está isenta de riscos como mostra a inquietante capacidade do mundo eletrônico a dar credibilidade às falsificações ou erros e a submeter a hierarquia dos conhecimentos à lógica econômica das mais poderosas empresas multimídia. Estes temores são plenamente justificados e devem inspirar possíveis dispositivos para limitar os efeitos desastrosos da revolução digital. Porém, não devem fazer esquecer outras realidades mais promissoras.

O sonho da biblioteca universal parece hoje mais próximo de tornar-se realidade do que nunca, inclusive mais do que na Alexandria dos Ptolomeus. A conversão digital das coleções existentes promete a constituição de uma biblioteca sem muros, onde se poderia aceder a todas as obras publicadas em algum momento, a todos os escritos que constituem o patrimônio da humanidade. A ambição é magnífica, e – como escreve Borges não sem ironia – “quando se proclamou que a Biblioteca abarcava todos os livros, a primeira impressão foi de extravagante felicidade” (Jorge Luis Borges, 1941). Porém, seguramente, a segunda impressão deve ser um interrogar-se sobre o que implica essa violência exercida sobre os textos dados a ler sob formas que não mais aquelas onde figuravam para seus leitores do passado. Semelhante transformação não é sem precedentes, se poderia dizer e foi no códex, e já não nos rolos de primeira circulação, que os leitores medievais e modernos se apropriaram das obras antigas ou, ao menos, daqueles se tinham podido ou desejado copiar. Seguramente. Porém para compreender as significações que os leitores têm dado aos textos de que se apoderam é necessário proteger, conservar e compreender os objetos escritos que os têm transmitido. A “felicidade extravagante” suscitada pela biblioteca universal poderá tornar-se uma impotente amargura se se traduz na relegação ou, pior ainda, a destruição dos objetos impressos que têm alimentado ao longo do tempo os pensamentos e sonhos daqueles e daquelas que os têm lido. A ameaça não é universal, e os incunábulos não tem nada a temer, porém não ocorre o mesmo com as mais humildes e recentes publicações, sejam ou não periódicas.

Ao mesmo tempo em que modifica as possibilidades de acesso ao conhecimento, a revolução digital transforma profundamente as modalidades das argumentações e os critérios ou recursos que podem mobilizar o leitor a aceitá-las ou rechaçá-las. Por um lado, a textualidade eletrônica permite desenvolver as argumentações ou demonstrações segundo uma lógica que já não necessariamente linear nem dedutiva, tal como implica a inscrição de um texto sobre uma página, mas que pode ser aberta, estendida e relacional graças à multiplicação dos vínculos hipertextuais. Por outro lado, e como consequência, o leitor pode comprovar a validade de qualquer análise consultando por sei mesmo os textos (porém também as imagens, as palavras gravadas ou as composições musicais) que são o objeto mesmo do estudo se, evidentemente, são acessíveis numa forma digitalizada. Semelhante possibilidade transforma as técnicas clássicas de prova (notas de rodapé, citações, referências) que supunham que o leitor confiava no autor sem ter a possibilidade se colocar na mesma posição que este frente aos documentos analisados ou utilizados. Neste sentido, a revolução digital constitui também uma mutação epistemológica que modifica os modos de construção e certificação dos discursos do saber. Pode assim abrir novas perspectivas à aquisição dos conhecimentos outorgada pela leitura, qualquer que seja a modalidade de inscrição e transmissão do texto do qual se apodera.

Embora sem planejarmos num futuro ainda incerto e desconhecido e concebendo o livro eletrônico em suas formas e suportes atuais, continua pendente uma questão: a da capacidade desse novo livro de encontrar ou produzir seus leitores. A ampla história da leitura mostra com vigor que as mutações na ordem das práticas são, com frequência, mais lentas que as revoluções das técnicas. Não se impuseram novas maneiras de ler imediatamente depois da invenção da imprensa. Do mesmo modo, as categorias intelectuais que associamos ao mundo dos textos perduraram mais que as novas formas do livro. Recordemos que depois da invenção do códex e a desaparição do rolo, o livro, entendido como uma divisão de uma obra, tal como a parte ou o capítulo, correspondeu com frequência à quantidade de texto que continha um antigo rolo (Luciano Canfora, 2002).

Porém, não devemos menosprezar a originalidade de nosso presente que se apoia no fato das diferentes revoluções da cultura escrita, que no passado haviam estado separadas, se apresentarem simultaneamente. Com efeito, a revolução do texto eletrônico é ao mesmo tempo uma revolução da técnica de produção e reprodução dos textos, uma revolução da forma de seu suporte e uma revolução das práticas de leitura. Substitui a contiguidade física que vincula os vários textos copiados ou impressos em um mesmo livro (ou uma revista ou um periódico) por sua distribuição nas arquiteturas lógicas que governam os bancos de dados, as coleções digitais ou as publicações eletrônicas. Por outro lado, redefine a materialidade das obras porque desata o laço visível entre um texto e o objeto que dá ao leitor – e não ao autor ou ao editor – o domínio sobre a forma e o formato das unidades textuais que queira ler. Deste modo, todo o sistema de percepção e uso dos textos é o que é transformado. Por último, o leitor digital lê um rolo, porém um rolo que se move verticalmente frente a seus olhos e um rolo que está dotado de todos os dispositivos textuais que apareceram com o códex: paginação, índices, desenhos, etc. O cruzamento dos usos dos suportes do escrito anteriores à tela define, pois, uma relação com o texto completamente original.

HERANÇAS E INCERTEZAS
O mundo digital, apoiado nestas mutações, pode dar realidade a sonhos nunca alcançados que o precederam. Assim como a biblioteca de Alexandria (Luciano Canfora, 1986), promete a disponibilidade universal de todos os textos que foram escritos, de todos os livros que foram publicados. Do mesmo modo que as práticas dos humanistas renascentistas (William H. Sherman, 2007), o mundo digital favorece a colaboração do leitor, já que pode escrever ele mesmo no texto aberto e na biblioteca sem muros dos escritos eletrônicos. Da mesma maneira que o projeto da Ilustração define um espaço público no qual, como desejou Kant (Immanuel Kant, 1784), cada pessoa privada pode e deve fazer sem restrições nem exclusões um uso público, isto é, por escrito, de sua razão. Neste sentido, o mundo digital é muito mais que uma nova técnica de composição, transmissão e apropriação dos textos, discursos ou livros. Por certo, permite a digitalização dos textos já escritos, a produção de textos nascidos como digitais ou práticas de escrita desconhecidas tal como as dos blogs e redes sociais. Porém, promete também a transformação, tanto das categorias mais fundamentais da experiência, por exemplo, as noções de amizade, multiplicada até o infinito, ou da identidade ocultada ou exibida, quanto a invenção de novas formas de cidadania – ou de controle e de censura (Milad Doueihi, 2008 e 2011).

Como na época da invenção da imprensa, porém de maneira mais intensa, nosso presente digital está atravessado por tensões entre diferentes futuros possíveis: a multiplicação e justaposição de comunidades separadas, cimentadas por seus usos específicos das novas técnicas; a apropriação por parte das empresas mais poderosas do controle sobre a constituição e a difusão das bases de dados ou a produção e circulação da informação, ou então a constituição de um público universal definido pela participação de cada um de seus membros na construção coletiva dos conhecimentos ou o intercâmbio de ideias, discursos e sentimentos. A comunicação à distância, livre, gratuita e imediata que a rede permite pode dar realidade a qualquer destas virtualidades.

Assim a grande conversão digital pode levar à perda de toda referência comum, à separação radical das identidades, à exacerbação dos particularismos. Pelo contrário, pode impor a hegemonia de um modelo cultural único, de uma língua dominante, e a destruição mutiladora das diversidades (Roger Chartier, 2004). Porém, também pode produzir uma nova modalidade de constituição e comunicação do saber fundada no intercâmbio dos conhecimentos, das experiências e sabedorias. A nova navegação enciclopédica, se permite que cada um embarque em suas naves, poderia fazer plenamente realidade a esperança de universalidade que sempre acompanhou os esforços que buscaram abarcar a multiplicidade das coisas e as palavras na ordem dos discursos (Michel Foucault, 1970).

As interrogações do presente têm suas razões nestas incertezas. Como manter o conceito de propriedade literária, definido desde o século XVIII a partir de uma identidade perpetuada das obras, reconhecível mais além de qual fosse a forma de sua publicação, em um mundo onde os textos são móveis, maleáveis, abertos? Como reconhecer uma ordem do discurso que foi sempre uma ordem dos livros, ou dizendo melhor, uma ordem do escrito que associa estreitamente autoridade de saber e forma de publicação, quando as possibilidades técnicas permitem, sem controles nem prazos, colocar em circulação universal opiniões e conhecimentos, mas também erros e falsificações. Como preservar maneiras de ler que construam a significação a partir da coexistência de textos em um mesmo objeto (um livro, uma revista, um periódico) enquanto o novo modo de conservação e transmissão dos escritos impõe à leitura uma lógica analítica e enciclopédica onde cada texto não tem outro contexto além daquele proveniente de seu pertencimento a uma mesma temática?

Estas perguntas têm uma relevância particular para as mais jovens gerações de leitores que, ao menos nos meios sociais suficientemente ajustados e em países mais desenvolvidos, têm entrado na cultura escrita por meio da tela do computador. No seu caso, uma prática de leitura muito imediata e muito espontaneamente habituada à fragmentação dos textos, de qualquer tipo, se opõe frontalmente às categorias forjadas no século XVIII para definir as obras escritas a partir da individualização de sua escrita, a originalidade singular de seu texto e a propriedade intelectual de seu autor (Roger Chartier, 2012). A aposta não é insignificante uma vez que pode conduzir quer à introdução na textualidade eletrônica de alguns dispositivos capazes de perpetuar os critérios clássicos de identificação das obras enquanto tal, em sua coerência e identidade, quer ao abandono desses critérios em prol de uma nova maneira de compor e perceber o escrito como uma continuidade textual sem proprietário nem copyright, na qual o leitor recorta e recompõe fragmentos móveis e maleáveis.

Estas questões já têm sido largamente discutidas por inúmeros discursos que buscam conjurar, por sua própria abundância, a desaparição anunciada do livro, do escrito e da leitura. À admiração ante as incríveis promessas de navegações entre os arquipélagos dos textos digitais se opõe a nostalgia por um mundo do escrito que já teríamos perdido. Porém, na verdade é necessário escolher entre o entusiasmo e o lamento? Para situar melhor as grandezas e misérias que das transformações do presente, talvez seja útil apelar à única competência de que podem jactar-se os historiadores. Sempre têm sido lamentáveis profetas, porém às vezes, ao recordar que é o presente é feito de passados sedimentados ou emaranhados, têm sido capazes de contribuir com um diagnóstico mais lúcido quanto às novidades que seduzem ou espantam a seus contemporâneos.

Não quero repetir o que já escrevi sobre o tema, mas sim ressaltar o que me parece o mais importante nas mutações introduzidas pela revolução do texto digital. O mais essencial se refere à ordem dos discursos. Na cultura impressa, tal como a conhecemos, esta ordem se estabelece a partir da relação entre tipos de objetos (o livro, o jornal, a revista), categorias de textos e formas de leitura. Semelhante vinculação se enraíza em uma história de duração muito ampla da cultura escrita e resulta da sedimentação de três inovações fundamentais: em primeiro lugar, entre os séculos II e IV, a difusão de um novo tipo de livro que é ainda o nosso, isto é, o livro composto de folhas e páginas reunidas dentro da mesma encadernação que chamamos códex e substituiu os rolos da Antiguidade grega e romana (Colin H. Roberts y T. C. Skeat, 1987); em segundo lugar, em fins da Idade Média, nos séculos XIV e XV, a aparição do “livro unitário”, isto é, a presença dentro de um mesmo livro manuscrito de obras compostas na língua vulgar por um único autor (Petrarca, Boccacio, Christine de Pisan) enquanto que esta relação caracterizava antes somente as autoridades canônicas antigas e cristãs e as obras em latim (Armando Petrucci, 1995), e, finalmente, no século XV, a invenção da imprensa que continua sendo até agora a técnica mais utilizada para a produção dos livros. Somos herdeiros desta história, tanto para a definição do livro, quer dizer, ao mesmo um objeto e uma obra intelectual ou estética identificada pelo nome de seu autor, quanto para a percepção da cultura escrita baseada em distinções imediatamente visíveis entre diferentes objetos (cartas, documentos, jornais, livros).

É esta ordem dos discursos que muda profundamente com a textualidade eletrônica. É agora um único aparelho, o computador, que faz aparecer ao leitor as diversas classes de textos previamente distribuídas entre objetos distintos. Todos os textos, qualquer gênero que sejam, são lidos em um mesmo suporte e nas mesmas formas. Cria-se, assim, uma continuidade que não diferencia mais os diversos discursos a partir de sua própria materialidade. Daí, surge uma primeira inquietação ou confusão dos leitores que devem se confrontar com o desaparecimento dos critérios imediatos, visíveis, materiais, que lhes permitiam distinguir, classificar e hierarquizar os discursos.

Por outro lado, é a percepção das obras como obras que se torna mais difícil. A leitura frente à tela é geralmente uma leitura descontínua, que procura a partir de palavras-chave ou rubricas temáticas o fragmento textual do qual deseja apoderar-se (um artigo num periódico, um capítulo em um livro, uma informação num website) sem que se perceba a identidade e a coerência da totalidade textual que contém este elemento. Em certo sentido, no mundo digital todas as entidades textuais são como banco de dados que procuram fragmentos cuja leitura não supõe de maneira nenhuma a compreensão ou percepção das obras em sua identidade singular.

A originalidade e a importância da revolução digital estão em obrigar o leitor contemporâneo a abandonar todas as heranças que o tinham plasmado, já que a textualidade digital não utiliza mais a impressão (pelo menos em sua forma tipográfica), ignora o “livro unitário” e está alheia à materialidade do códex. É ao mesmo tempo uma revolução da modalidade técnica de reprodução do escrito, uma revolução da percepção das entidades textuais e uma revolução das estruturas e formas mais fundamentais dos suportes da cultura escrita. Daí, por sua vez, o desassossego dos leitores, que devem transformar seus hábitos e percepções, e a dificuldade para entender uma mutação que lança um profundo desafio, tanto às categorias que geralmente utilizamos para descrever a cultura escrita, quanto à identificação entre o livro entendido como uma obra e como um objeto material cuja existência começou nos primeiros séculos da era cristã e que parece ameaçado no mundo dos textos eletrônicos.

Será o texto eletrônico um novo livro de areia, cujo número de páginas era infinito, que não se podia ler e que era tão monstruoso que, como o livro de Próspero em A tempestade, devia ser sepultado? Ou então, propõe uma nova forma de presença do escrito capaz de favorecer e enriquecer o diálogo que cada texto estabelece com cada um de seus leitores? Não sei. Talvez ninguém saiba. A única coisa que um historiador pode fazer é recordar que na vasta história da cultura escrita cada mutação (a aparição do códex, a invenção da prensa, as revoluções da leitura) produziu uma coexistência original entre os antigos objetos e gestos e as novas técnicas e práticas. É precisamente uma reorganização semelhante da cultura escrita que a revolução digital nos obriga a contemplar. Dentro da nova ordem de discursos que se esboça, aprecio pensar que o livro não irá morrer em seus dois sentidos de objeto material particular e de obra estética ou intelectual. Morrerá como discurso, como obra cuja existência não está ligada a uma forma material particular. Os diálogos de Platão foram compostos e lidos no mundo dos rolos, foram copiados e publicados em códex manuscritos e em livros impressos, e hoje em dia podem ser lido em frente à tela. Não deve tampouco morrer o livro como objeto porque este “volume de papel com folhas”, como dizia Borges, é ainda o objeto mais adequado aos hábitos e expectativas dos leitores que se envolvem num diálogo intenso e profundo com as obras que lhes fazem pensar, rir ou sonhar.

Podemos pensar e esperar (Umberto Eco e Jean-Claude Carrière, 2009). Porém, a verdadeira resposta não se encontra nos hábitos e desejos dos leitores que entraram no mundo digital a partir de suas experiências como leitores de livros impressos. A resposta pertence aos nativos digitais que identificam cultura escrita e textualidade eletrônica. São suas práticas, mais do que nossos discursos, aquilo que irá decidir sobre a sobrevivência ou a morte do códex como realidade material e a do livro como discurso.

REFERENCIAS
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Conferencia magistral apresentada no Seminário Internacional “¿Qué leer? ¿Cómo leer? Perspectivas sobre la lectura en la infancia”, organizado pelo Plan Nacional de Fomento de la Lectura, Lee Chile Lee, del Ministerio de Educación y la Universidad Diego Portales durante los días 6 y 7 de diciembre de 2012, pelo reconhecido historiador francês Roger Chartier.

Tradução: Richard Romancini/Trabalho sem fins lucrativos.
Imagem: MorgueFile/ Fonte: Blog Mídias na Educação (ECA/USP)

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