O Livro e as Mídias: Problematizações


Compartilhamos abaixo o artigo "O livro e as mídias: problematizações" da professora e pesquisadora da PUC-RJ, Eliana Yunes, responsável pela Cátedra UNESCO de Leitura e uma das criadoras do PROLER da Biblioteca Nacional. O texto foi publicado no BOLETIM TÉCNICO DO SENAC, revista eletrônica, Vol. 28, nº 3, de setembro/dezembro de 2002.

O livro e as mídias: problematizações. Diante da mídia eletrónica, dos índices alto de analfabetismo, de analfabetos funcionais, do custo alto dos livros, o que pensar? Estes suportes novos empurram os indivíduos para a leitura ou os marginalizam cada vez mais? Os leitores estão morrendo, a literatura vai desaparecer? Estes novos tempos, de saberes locais e iniciativas regionais, podem mudar o perfil da produção e da recepção, podem nos obtigar a repensar metodologías e estratégias, mas dificilmente farão desaparecer a leitura, pelo menos a das novas linguagens em que todos temos que nos reeducar.

Abstract
Considering mass communications’s, high levels of illiteracy, function illiterate, expensive cost in books, what should we think? This new holders push indivisibles to read or put them apart even more? The recorders are dying, will the reading disappear? These new concepts, local knowledges and regional iniciatives (or projects), cab they change the production and receptions’s profile? They may force to reflect methodologies and strategies but hardly they can contribute to lecture disappearance, at least we have got to learn again with the new concepts.
Key-words: Lecture; Technologies; Mass communications’s; School; Politcs Lecture’s.


Eis o tempo de muitas palavras, muitas linguagens, muitos suportes, muitas discussões e pouca compreensão, pouco discernimento, pouco entendimento.

Os homens reuniram um formidável acervo de conhecimento, de informações, de referências, mas perderam as experiências, no dizer de Walter Benjamim1 em O narrador, as vivências se tornam virtuais e não apenas para uma minoria, por conta da TV e da Internet, e as convivências se esgarçam, em função da falta de tempo, engolido pelo trabalho.


O projeto da modernidade, feito de máquinas e tecnologias, com promessas de tempo de lazer e convívio se mostrou falacioso, como bem denunciou Hanna Arendt2, em A condição humana.

Contudo, toda a realidade humana está contida nas linguagens, as múltiplas que constituímos, desde os gestos nos rituais primevos até as imagens, das cavernas ao cinema. Como lembrou Roland Barthes3 em certo momento, tudo isto, no entanto, se traduz em palavras, este sistema privilegiado, comum e democrático, até que chegássemos à escrita. Esta, que nos permitiu guardar certas memórias, foi rasurando outras e muitas, que a história das mentalidades contemporânea – chama atenção Jacques Le Goff4 – vem fazendo o esforço de resgatar como palimpsestos.


A escrita pretendeu democratizar o conhecimento e o poder (a mesma coisa, segundo o Gênesis), com a disseminação massiva das informações através do livro, em substituição aos rolos e aos códices, e em escala industrial poderia, segundo os sonhos iluministas, alcançar a universalização do saber, daquele que a ideologia dominante considerava adequado e verdadeiro, quer pela moral, quer pela ciência.

Este não é o espaço para recapitular a história do livro na América Latina (já o fizemos em um arti­go entregue ao Cerlalc em l9945, mas não é possível esquecer que o cerceamento das populações à educação e à sua autonomia cultural tem sido, em grande parte, provocado pela pobreza da circulação do livro, antes mesmo do confronto com os suportes da mídia de imagem e – agora, nas classes mais favorecidas –, do impacto da Internet. O acervo disponível se amplia, mas sem o juízo crítico, formado obrigatória e precedentemente pela condição de leitor, torna-se uma babel intransponível.


Como “os limites do mundo são os limites da linguagem”, na formulação perspicaz de Wittgenstein6 (que revolucionou a filosofia da linguagem com seu enfoque empírico), a condição de falante, dois mil anos depois da invenção alfabética, está condicionada a estruturas da sintaxe-semântica da escrita, que devora os incompetentes que a escola tem gerado, impedindo-os, paradoxalmente, de entrar no mercado de trabalho de modo produtivo, de forma criativa, gerando bens e recursos.
 Ao contrário, a maioria que egressa da escolaridade mínima que obtém, sem o livro e a leitura (o manual de textos e gramática é quase sempre um livro eunuco) vai servir como trabalhador braçal, que só assina o nome, não entende instruções e dá prejuízos aos donos do capital que, aliás, apenas com isto se comovem. Mas nem assim aprendem que só o investimento em recursos humanos – leia-se formação de leitores – pode garantir um processo continuado de riquezas sociais e qualidade de vida, para o crescimento de um mercado consumidor independente.

Encarcerado nas bibliotecas, garantido em compras colossais pelo Estado mas longe dos possíveis leitores, o livro enfeita prateleiras, enobrece empresas editoriais, enriquece grandes centros culturais, faz média política em mãos de governantes populistas e praticamente iletrados, mas não chega ao aconchego, ao regaço do leitor, não lhe deleita a alma, não lhe rasga horizontes, não cria repertórios de vida. Por quê? A cadeia de (ir)responsabi­lidades é longa, da família faminta e carente que constitui o contingente populacional da América Latina e Caribe, aos interesses que manipulam programas de socorro a bancos em detrimento das gentes; os que preferem gastar com mísseis e bombas a fazê-lo que com filosofia, física e poesia, isto é, com educação, do que depende a ciência e a cultura.

Nesta rede estamos implicados, os professores que ensinam por ensinar, os editores que publicam por vender, os políticos que abrem escolas para dar visibilizadade a seu nome em placas, mas menosprezam o homem vivo que diante deles, anônimo que seja, é quem poderia, pelo percentual demográfico assustador, tornar o mundo menos violento, menos trágico, se soubesse eleger seus dirigentes. “O eleitor precisa antes ser leitor”, temos repetido em vão, mesmo para países de escolaridade universal mas acrítica, xenófoba e nacionalista, acima ou abaixo do Equador.

A cultura é feita de memória e transformação e, portanto, se insere na dimensão do tempo e espaço que nos constituem como seres históricos que lidam com a historicidade dos saberes e do conhecimento que, por isso mesmo, nunca são iguais, pois se re-situam a cada reapropriação feita pelo leitor na história viva da sua contemporaneidade, onde se imbricam heranças locais e diferenciadas com tesouros culturais permanentes da experiência humana.

Algumas destas “matérias” são de natureza técnica – potes, pontes, monumentos –, mas há também as simbólicas que, se não podem erguer muralhas contra a passagem do tempo e a ruína das formas exteriores, investem nas realizações, digamos espirituais, cujo feito maior não é o de nos reinserir na dimensão dos deuses e heróis, mas de nos resgatar temporariamente, transitoriamente, do tempo e lugar marcados, para o não-lugar, onde utopicamente seria possível acender o desejo próprio, “a memória de si mesmo”, que uma amnésia progres­siva, trazida pelo mercado e pela mídia, aliena, transformando a (inter)subjetivi­dade em subjetivação. Bastam quinze minutos de fama para criar a ilusão do presente perene, e jogar-nos no paraíso circular do consumo/produção em que nos tornamos meros objetos.

No caso das artes e da palavra literária, oral ou escrita, o inacabamento, a incerteza, longe de ser fragilidades, são a abertura para a inserção do outro, com amplas liberdades. O conhecimento científico, à luz da física quântica, nos anuncia complexidades semelhantes que exigem reflexão crítica, ou dizendo de outro modo, um pensar que nos tire do isolamento e das certezas e nos recoloque no meio dos homens e da diversidade.

Como fazê-lo diante da indústria cultural que emudece – porque não dá tempo à resposta – nem favorece a “polifonia” que suscita o diálogo e demanda o outro? Dos males da globalização desponta a uniformização das mentalidades que a ganância da produção universalizada ignora, a banalização pelo fácil, a trivialidade do óbvio. Os livros não escapam desta busca do sucesso rápido e da venda em bloco. Barthes7 alertava que “ler é ser movido a levantar os olhos do texto”, enquanto os “media” impedem-nos de desviá-los para qualquer lado como se os tivéssemos fixos.

Nascido com a modernidade, ajudando-a a nascer com a invenção da imprensa por Gutemberg, alavancando a classe burguesa ao poder, o livro como produto submeteu-se às regras da revolução industrial e, logo, tecnológica, que agora o traz à condição de objeto descartável como tudo o mais que, com o avanço técnico, parece ameaçado pela substituição.

Depositário do saber que, cumulativamente, nos séculos XVIII e XIX, gerou as enciclopédias e expandiu as bibliotecas por conta da necessidade de educar as massas com a escolarização, o livro, nos países periféricos como os nossos, não completou a formação necessária do público leitor para o uso conseqüente e livre das máquinas e sistemas eletrônicos. É que, aí, a quantidade de informação disponível exige capacidade de escolha, orientação de busca, ordenação pessoal dos dados, ainda que aparentemente se esteja acompanhado de um exército de informantes. Ainda que falemos apenas do Ocidente, a situação não é homogênea. Só os verdadeiramente iniciados como leitores andarão pelos labirintos destas bibliotecas virtuais com algum conforto e independência, dada a fragmentação que as constitui, como reflexo mesmo da pluralidade pós-moderna.



Nunca na História a leitura foi tão valorizada socialmente e o sistema escolar em todos os níveis expandiu-se tanto; paradoxalmente, as estatísticas apontam para um número cada vez menor de leitores efetivos, enquanto o pú­blico das feiras de livros aumenta, tomando-as como eventos, como espetáculos, cuja transitoriedade contrasta com a matéria que carregam estes suportes. As editoras, no entanto, sobrevivem, não apenas nos gigantescos conglomerados que se formam, mas sobretudo na política de produção e vendas que privilegia o livro didático, informação freqüentemente diluída e pasteurizada para alfabetizados funcio­nais, sem dimensão subjetiva e crítica e sem poder aquisitivo para se dar ao luxo de produzir/consumir cultura.
 Se os livros contribuíram para o processo de descolonização e independência, além da formação da cidadania, e, portanto, serviram ao processo histórico, é desconcertante que se leia pouco, mesmo em sociedades avançadas contemporâneas. Além das restrições de caráter econômico – aprendemos a ter com o livro uma relação amorosa e às vezes fetichista, como se possuí-lo entre as mãos fosse uma experiência quase sagrada, herdada das origens mesmas das “Escrituras” –, a passividade diante do texto impregnou e imobilizou a vivência dos leitores a partir da escola, onde a decifração do sentido tinha precedência absoluta sobre a interação texto-leitor. O sentimento de incompetência diante das letras foi alijando o leitor do livro e, por conseqüência, da biblioteca.

Por um lado, pode-se apontar para o fracasso do sistema escolar, de natureza superficial e excludente, mas o problema está radicado justamente no tipo de material escrito que a escola consome, na experiência redutora que têm os estudantes com a linguagem, no estreitamento do contato com os discursos artísticos, apesar da insistente denúncia “barthesiana” de que, na iminência do desaparecimento das disciplinas, a literatura deveria ser a sobrevivente preferencial (in Aula). Curiosamente, no momento em que o cinema, a TV, o teatro recorrem com maior intensidade às fontes literárias, os organismos decisórios sobre programas e currículos do sistema educacional dispensam o ensino da literatura e das artes na formação básica da cidadania. Não admira, pois, que a capacidade de reflexão, a percepção crítica e a auto-estima que o domínio do discurso revela, venham se deteriorando irremediavelmente, assustando, no mínimo, o mercado editorial.

Esta ligação entre livro e literatura não demanda muitas explicações, assim como os rolos estão associados às escrituras religiosas. A arte de se deixar envolver pelo escrito, exercitar o pensamento e excitar o imaginário veio dos mitos para os contos e para os romances, desbordando, segundo o próprio Einstein, em sua autobiografia, para a ciência investigativa. No entanto, esta dimensão crucial da formação de leitores tem sido relegada por editores e Estado, associados na distribuição massiva dos livros didáticos, com o que dão por resolvida sua cota de obrigação social.

Claro que ler demanda tempo, treinamento, intimidade, absolutamente cabíveis na dimensão da sala de aula se as opções para a educação fossem outras, da arquitetura às metodologias. Ler se aprende lendo e “lendo juntos”, como o amor pelas histórias nasce de ouvi-las narrar –, se desde a mais tenra idade, por vozes amadas. Em outras palavras, toda a metodologia de convívio com a palavra escrita, sobre o papel, os muros ou na tela de um computador, ao menos a princípio, deve ser uma experiência partilhada. À dificuldade de ler um texto com va­zios e abertura de novos horizontes de mundo (Wolfgang Iser8) que demandam do leitor agilizar suas memórias e acervos pessoais, criar verdadeiramente um efeito pela recepção, corresponde o êxito dos best-sellers e livros de auto-ajuda com receituário que o mantém passivo, segundo o modelo da TV ou do letramento segundo o livro didático.

A ênfase na formação do gosto pelas narrativas teria efeitos impactantes sobre o aprendizado de um modo geral e abriria caminhos para uma qualificação profissional capaz de elevar o padrão médio econômico e sociocultural de grande parte da população. A desvalorização progressiva da palavra pela invasão das imagens – que, aliás, precederam a escrita alfabética e implicitamente referiam uma certa narratividade por trás dos traços e dos símbolos –, o desterro do debate de idéias e o medo do aparelhamento dos sujeitos para a argumentação e tomada de decisão política têm obstruído também a circulação do livro de criação e ensaios. Nota-se, contudo, como as biografias e os relatos “voyeuristas” do real ressurgem com força na mídia televisiva, eletrônica e impressa. Tudo rápido, perecível, quando não paralisante do próprio viver, pensar e sentir.

Sem leitores formados, portanto, os próprios e-books não irão muito longe. Ainda que estejamos falando de uma geração crescida com os dedos no teclado, com coordenação motora complicada diante de um lápis ou uma caneta, e enorme familiaridade com “janelas e programas de redes”, o avanço excepcional do recurso do hipertexto será de pouca valia na hora da composição textual. Como estamos falando de uma minoria que hoje tem acesso a este tipo de equipamento caro, inclusive para manutenção e atualização em sistemas integrados, há tempo suficiente para uma mudança radical de estratégia, articulável entre governo, empresas de livro e sociedade para reverter o quadro, que só traz a crise do livro porque traz, antes, a crise da leitura.

Não há realmente por que temer um confronto letal entre o livro e a mídia eletrônica, se o caso anterior da fotografia não dizimou as artes plásticas, o cinema não morreu com a televisão, nem matou o teatro, a música vem ganhando novos suportes e o mercado adaptando-se para a defesa da propriedade intelectual e do direito autoral. O problema que persiste é o da exclusão interessada do grande potencial de leitores, do comodismo da venda em bloco de obras menos exigentes, a alienação crítica que inviabiliza o leitor para invia­bilizar o cidadão autônomo com capacidade de escolha e compra. Entende-se o perigo das mentes abertas, não se entende o choro pela falta de leitores que eleva ainda mais o preço do livro, e a opção por uma (de)formação educativa que dilacera o tecido social pela irresponsabilidade tanto de ricos como de deserdados, por conta da opção preferencial pela exclusão e pela violência.

Em nossas sociedades, o livro está irremediavelmente atrelado à escola, ainda, já que as estreitas políticas de leitura postas em prática desconhecem que o letramento é cultural, deve ser praticado enquanto recepção e interação em todo espaço social – lemos museus (e seus catálogos), filmes (e suas críticas), cidades (e suas administrações), passando necessariamente por jornais, revistas, anúncios, etc. que não dispensam a escrita e a leitura. Para os que já lêem, as possibilidades se alargam e o livro impresso ainda vai pontificar longamente, de forma talvez ainda mais elitista e sofisticada, se não se fizer nada decisivo em direção oposta.

A planetarização do iletrismo via Internet é mais uma conseqüência da massificação que esteriliza a curiosidade intelectual sobre o mundo e sobre si mesmo, provocada pela pouca familiaridade com a leitura como exercício de pensamento, como prática hermenêutica, como ação comunicativa, se tomamos de empréstimo as reflexões de Habermas9. Nada romântico e individualista, como nos primórdios da modernidade burguesa; antes, com toda a clareza, reconhecer que a intersubjetividade é gerada por contaminações em comunidades interpretativas (cf. Stanley Fish10), berçários dos sentidos; mas saber que as diferenças nascem dos repertórios de vida que podem ser similares, mas não se repetem. O livro dificilmente poderá em nossos dias gerar identidades coletivas, como o fez com as nações que se faziam independentes há 200 anos, mas a diversificação e maior facilidade para produtores independentes ajudarão à formação de identidades múltiplas e complexas, o que vale dizer singulares (cf. Felix Guatarri11).

Há que se considerar que na sociedade da informação, irreversível, a leitura alcança dimensões cada vez maiores em suas possibilidades, pois jovens que não lêem notícias habitualmente, fazem-no “on-line” com naturalidade, por conta da paginação e da forma sucinta. Lerão livros inteiros ou capítulos sem imprimi-los? Só o tempo dirá como eles lidarão com os novos recursos da tecnologia para ler. Imaginemos as mudanças do rolo para o codex e daí para o livro em papel impresso. Os leitores formados ou em formação efetiva no século 21, deleitam-se com as 700 páginas de O Senhor dos Anéis ou com os roteiros de Arquivo X enquanto assistem ao filme ou aos episódios na TV. A qualidade da escrita continua sendo uma atração à parte, assim como os temas que lhes são muito próximos afetivamente ou muito enigmáticos, longinquamente. Entre estes jovens a poesia, pelos caminhos da música popular, vem recobrando seu espaço.

O problema reside pois, nos leitores potenciais não-formados, desassistidos. Para estes, a Internet poderia, de fato, se constituir numa alternativa para leituras breves, que não demandassem pagamentos, como mostra do que pode ser a experiência de ler. Atrações tipo chat ou interativos, com textos fascinantes, de dificuldades e extensão progressivas, poderiam inclusive suscitar neles o gosto por formar suas próprias antolo­gias. No Brasil, as séries literárias têm público cativo, mesmo entre os muito jovens, como foi o caso recente do romance Os Maias, do autor português Eça de Queiroz. Em sites voltados para a formação do leitor deveriam aparecer dados sobre livros, com resumos cativantes, bibliografia conexa, para seus estudos. Editoras, bibliotecas, fundações e livreiros, de acordo, pode­riam prover isto.

Vê-se claramente que os recursos gastos com publicidade para vender aos mesmos 2% de leitores no país poderiam ser mais bem investidos em outro tipo de publicidade massiva, com celebridades da mídia exibindo sua condição de leitores, com atividades públicas permanentes e regulares de leitura em círculos nos parques, museus, ante-salas de cinema, apoio a projetos de qualificação de contadores de histórias (olho vivo! Não se trata de um retorno à oralidade!) para a formação de novos leitores, presença e debate com autores nas escolas de ensino médio, enfim, tudo aquilo que, já provado como eficaz, não tem continuidade por razões de mesquinharias políticas ou mesmo superficialidade e ganância dos que deve­riam ser os maiores interessados na formação de uma sociedade leitora. O investimento cíclico, periódico e assistemático, por ausência efetiva (ou talvez, mesmo, ignorância do que seja) de políticas para a formação de leitores, com as peculiaridades próprias de cada segmento social, destrói rápido o que se consegue lentamente.

Pensar o destino do livro no mundo globalizante não remete às novas tecnologias de circulação como questão primeira, mas às sociedades onde ele e a leitura se inserem, perseguindo uma coerência entre os meios e os fins que pleiteamos alcançar. Numa sociedade fragmentada desde a família, o movimento de coesão pela leitura partilhada pode gerar – no bar do complexo de cinemas, após os filmes, por exemplo – o gosto pelas linguagens e pelas narrativas, pela troca de idéias e pelo espírito atento. Sem formar leitores não se venderão senão os mesmos livros inócuos para escolares, ou parcos títulos para mínimos compradores. O barateamento virá com o e-book? Por outro lado, quais os cuidados com a qualidade na produção eletrônica de materiais de leitura? Separar o lixo do reciclável, separar a informação fidedigna da manipulação da opinião pública, demandam já leitores formados entre uma escola pública de qualidade e uma sociedade que privilegie a cultura frente ao consumo.

O mais imprescindível – que os sujeitos leiam em qualquer suporte, inclusive no papel que resiste há milênios, no impresso de meio milênio – depende de vontade política, descortino empresarial, alianças e parcerias institucionais, mobilização dos media e interesse efetivo da sociedade em ações assistidas e continuadas em favor da leitura. Todos lucrarão, cada qual a seu tempo. A exclusão não é um prejuízo imediato de ordem econômica, mas permanente de ordem social. Quando vamos entender isto? Alfabetizar não basta; distribuir livros não basta; criar biblio­tecas não basta; eventos não bastam. Ou os editores mais lúcidos, como cidadãos, oferecem resistência a estes velhos mecanismos ou a situação do mercado irá de mal a pior.

“As palavras estão muito ditas e o mundo muito pensado”, diria nossa poeta maior Cecília Meireles. Por que não lemos o que escrevemos? Ou mudamos o contexto cultural ou só ampliaremos as queixas, mesmo com novas e promissoras tecnologias. Não criemos ilusões sobre o poder mágico da informatização. A necessidade de reflexão depende do ato de ler, é isso que cria leitores críticos, pensadores, criadores, novos autores. É uma espécie de pré-requisito para se circular nas infovias. Cada leitor saberá tirar proveito das formas combinadas de acesso à cultura pela palavra escrita.

Gostaria de ter escrito isto:

Os livros na estante já não tem tanta importância
Do muito que li, do pouco que sei, nada me resta
A não ser a vontade de encontrar.
O motivo eu já nem sei.
Nem que seja só para estar do seu lado
Só para ler no seu rosto
Uma mensagem de amor.
Herbert Viana.


Notas:
BEJANMIM, Walter. O narrador. São Paulo: Brasiliense, 1999.
ARENDT, Hanna. A condição humana. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1999.
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 2000.
LE GOFF, Jacques. História e memória, 4. ed. Campinas : Unicamp, 1996.
POLÍTICAS e leitura e o Mercosul. In: EL LIBRO en Amércia Latina y el Caribe. Colombia:

Cerlalc/Unesco, 1994. Nº 77-78 ???
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. In: Os Pensadores. São Paulo : Nova Cultural, 1999.
BARTHES, Roland. O Rumor da língua. Lisboa: Edições 70, 1984.
ISER, Wolfgang. El acto de leer. Madrid : Taurus, 1987.
HABERMAS, Jurgen. Consciência moral de agir comunicativo. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1983.
cf. FISH, Stanley. Is there a text in this class? Havard : Havard University Press, 1994.
cf. GUATARRI, Felix. Micropolítica : cartografias do desejo. Petrópolis : Vozes, 1986.

Fonte: http://www.senac.br/BTS/283/boltec283d.htm

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